por Fernando Bernardi Gallacci* e Gabriel Rosa Gracindo**
Entre 2020 e 2021, a alta no IGP-M (Índice Geral de Preços – Mercado) gerou embates entre contratantes privados e a administração pública.
Variações do índice de, aproximadamente, 30%, resultaram em pleitos e renegociações contratuais para mudar o indexador de reajustes contratuais, com diferentes poderes concedentes chegando até mesmo a reprogramar ou suspender os reajustes no período.
Isto é, governos e reguladores adotaram medidas para não onerar demasiadamente o tesouro ou para não repassar eventual acréscimo tarifário para o bolso dos usuários de serviços públicos, que foram impactados pelo cenário macroeconômico adverso decorrente da pandemia de Covid-19.
Em 2024, o cenário é oposto e peculiar. De acordo com a FGV (Fundação Getúlio Vargas), o acumulado de 12 meses do IGP-M sofreu variação de -3,18% (menos três vírgula dezoito por cento).
Agora o risco é reduzir a liquidez de algumas concessionárias e operadores de infraestrutura, agravando o quadro de disponibilidade de recursos iniciado pelas decisões da época da pandemia de Covid-19.
A discussão do tema merece aprofundamento, dada a complexidade jurídico-financeira dos contratos públicos de infraestrutura. A eleição dos critérios, formas e índices de reajuste é algo muito sério, assim como a aplicação responsável dos reajustes anuais.
Difícil justificar a luta para segurar o repasse de valores durante um período, exigindo a redução de liquidez de pagamentos no momento subsequente. Claro, é sempre possível alegar o princípio da modicidade tarifária. Mas é igualmente importante lembrar que os elementos do reajuste fazem parte da equação econômico-financeira do contrato, e um impacto oscilando valores pode afetar financeiramente o investidor privado.
Este tipo de postura causa redução de liquidez financeira, trazendo riscos com condão de refletir tanto na qualidade dos serviços, quanto no aumento do risco de financiamento.
Tal situação se agrava numa conjuntura econômica com alta taxa de juros, elevação do preço de insumos, somadas a retomada ainda gradual da demanda pré-pandemia por ativos em alguns setores da infraestrutura nacional.
A variação do IGP-M como indexador de reajuste contratual não é assunto novo para a regulação nacional.
Exemplos do debate sobre sua utilização em contratos de infraestrutura podem ser identificados nos mais diversificados setores, ainda existindo contratos que sofrem com as oscilações do índice.
Em 2021, no setor elétrico, concessionárias de geração de energia apresentaram à ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) requerimentos visando a impedir a majoração de cerca de 30% no preço pago pelo UBP (Uso de Bem Público), relativo ao potencial hídrico, e alteração do índice de reajuste da UBP, do IGP-M para o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), sob o argumento de impacto ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato e aos consumidores cativos do país.
A agência manteve a aplicação do índice contratual em função do risco de desbalanceamento sistêmico, mas encaminhou o processo para avaliação de mudança na indexação junto ao MME (Ministério de Minas e Energia).
Discussão similar também se estendeu para o setor distribuição, mas agora no âmbito das tarifas aplicadas pelas concessionárias.
Por outro lado, no setor de resíduos sólidos, em 2017, a AGIR (Agência Intermunicipal de Regulação do Médio Vale do Itajaí), em Santa Catarina, teve a oportunidade de se debruçar sobre pleito de concessionária que visou a afastar reajuste tarifário de -1,42% (menos um vírgula quarenta e dois por cento) referente ao IGP-M acumulado entre outubro de 2016 e outubro de 2017, requerendo a manutenção do valor praticado.
O reajuste deflacionário também parece ter sido objeto de discussão de concessão de saneamento básico no Rio Grande do Sul, quando a AGERGS (Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul) deixou de repassar o reajuste acumulado do IGP-M em 2021, parcelando a variação positiva e posteriormente se valendo do crédito para compensar o reajuste negativo que o IGP-M gerou nas tarifas praticadas pela concessionária local.
Em 2022, visando à uniformidade dos contratos de arrendamento portuário e estabilidade do critério de reajuste, a consultoria jurídica da AGU (Advocacia Geral da União) junto ao Ministério da Infraestrutura (Minfra) exarou o Parecer Referencial 00005/2021/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU, por meio do qual possibilitou, em tese, a alteração da indexação de 95 contratos do IGP-M para o IPCA, desde que pactuada.
Em nível estadual, é preciso lembrar que a mudança do índice foi igualmente avaliada no programa de concessões rodoviárias do governo do Estado de São Paulo, com a ARTESP (Agência de Transporte do Estado de São Paulo) alterando, entre 2011 e 2012, o índice de reajuste tarifário, de IGP-M para o IPCA, em alguns contratos de concessão rodoviária.
Sempre bom rememorar que, por tratar-se de cláusula econômica, eventual alteração de índice de reajuste contratual pressupõe acordo entre as partes, sendo que os precedentes aqui rapidamente mencionados comprovam existir experiência regulatória institucional para entender os impactos e contornos jurídicos da aplicação automática dos reajustes, sobretudo quando da eleição contratual de IGP-M.
Uma saída parece ser o simples cumprimento da regra de reajuste em todas as ocasiões.
Outra solução pode envolver a renegociação contratual, com o processamento de reequilíbrio econômico-financeiro simultâneo, para compensar variações expressivas dos índices.
Poder-se-ia, por exemplo, subsidiar parte do reajuste com recursos públicos, valendo-se de regime tributário de subvenção estatal.
De outra banda, seria possível mitigar os efeitos de um reajuste negativo com a assunção de encargos ou obrigações de investimento, que não só irão melhorar os serviços e ativos públicos, como também teriam o potencial de manter os pagamentos tarifários ou estatais, preservando a liquidez do investidor.
O tema é sensível e não pode ser confundido ou misturado com a questão – igualmente séria – da variação dos custos de insumos.
Embora seja tema que reflete a variação inflacionária e que possa ter ligação com o índice de reajuste contratual, em regra, este assunto envolve passivo regulatório disto, com debate aprofundado sobre a matriz de risco do contrato e aferimento da variação extraordinária de custos ao longo da execução contratual.
Os reguladores e os investidores privados precisam se apropriar destes debates e da experiência pregressa, preparando as conversas de reajuste para 2024.
Se for para discutir modicidade tarifária em face da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, será muito provavelmente o usuário quem sairá perdendo, com serviços ou ativos em estado doe deterioração.
O melhor é trabalhar desde cedo para evitar sobressaltos financeiros no contrato, cumprindo as regras contratuais, mas considerando o saneamento de passivos regulatórios, respeitando investimentos, e antevendo discussões de recomposição dos preços contratados. Tudo isso em conjunto é o que faz a mágica regulatória para assegurar a atualização de ativos e a prestação adequada dos serviços públicos à população.
*Fernando Bernardi Gallacci é mestre em Direito Administrativo, professor visitante do MBA de Saneamento Ambiental da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), advogado e sócio fundador da área de Infraestrutura, Regulatório e Negócios Governamentais do Souza Okawa Advogados.
**Gabriel Rosa Gracindo é mestre em Direito e Desenvolvimento e pós-graduado em Direito Administrativo pela FGV Direito São Paulo e advogado da área de Infraestrutura, Regulatório e Negócios Governamentais do Souza Okawa Advogados).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.
fonte: https://agenciainfra.com/blog/novamente-o-igp-m-o-impacto-deflacionario-no-equilibrio-economico-financeiro-dos-contratos-publicos-de-infraestrutura/